terça-feira, 1 de março de 2011

E o Óscar vai para...

"A perfeição não é apenas controlo. É também sobre o desapego. Surpreenda-se para que possa surpreender o público. Transcendência. Muito poucos têm isso neles. "


O Filme

Nina Sayers  é bailarina de uma companhia nova-iorquina de balé. A sua vida, como a de todos nessa profissão, é inteiramente consumida pela dança. Ela mora com a mãe, Erica, bailarina aposentada que incentiva a ambição profissional da filha. O diretor artístico da companhia, Thomas Leroy decide substituir a bailarina principal, Beth MacIntyre, na apresentação de abertura da temporada, O Lago dos Cisnes, e Nina é a sua primeira escolha. Mas surge uma concorrente: a nova bailarina, Lily que deixa Thomas impressionado. 

O Lago dos Cisnes requer uma bailarina capaz de interpretar tanto o Cisne Branco com inocência e graça, quanto o Cisne Negro, que representa malícia e sensualidade. Nina encaixa-se perfeitamente no papel do Cisne Branco, porém Lily é a própria personificação do Cisne Negro. As duas desenvolvem uma amizade conflituosa, cheia de rivalidade, e Nina começa a entrar em contacto com o seu lado mais sombrio...

Fonte - Wikipédia.

Abram-se as cortinas...  

No decorrer desta produção cinematográfica, percebe-se a existência de duas Faces de cada um de nós, de dois Cisnes – O Cisne Branco (o nosso lado mais puro, mais apelativo) e o Cisne Negro (que representa os nossos fantasmas e as nossas profundezas) – e Nina veio ao mundo para vestir, decididamente, a pele do Cisne Branco. Filha única de uma mãe frustrada e completamente castradora que lhe controla toda a vida, apresenta uma relação com o mundo da sexualidade de caris infantil, imaturo, arcaico, verificando-se uma simbiose (uma dependência) total pela figura materna.

O Pai de Nina é desconhecido, ausente, não sendo mencionado no decorrer do filme, dando a ideia ao espectador de uma relação exclusiva e dedicada entre mãe-filha, onde o controlo e a obsessão são o padrão predominante (prestem atenção à figura do brinquedo-bailarina que fica na mesinha-de-cabeceira de Nina a tocar como símbolo de controlo mental). Como já foi discutido em posts anteriores, esta ausência do pai (que tem o papel de quebrar a relação simbiótica mãe-filho) não permitiu a Nina uma resolução do Complexo de Édipo na idade adequada, tendo recorrido à projecção da figura paterna no seu professor Thomas Leroy, a quem tenta agradar obsessivamente (como se o tentasse seduzir fugazmente para compensar a presença da sua ausência na idade onde essa mesma ausência se mais presenciou (confuso? Adiante…).

Toda a procura obsessiva tanto pela sedução do Pai (Nome-Do-Pai) como pela busca da perfeição como bailarina, circunscreve-se à sintomatologia neurótica (única) que a protagonista padece, sendo os demais de caris psicótico onde existe uma fragmentação do Eu, resultante da relação dependente da mãe (para perturbar o desenvolvimento de uma criança, uma mãe não necessita de ser cruel e mal-tratante… criar uma excessiva dependência e controlo para com o filho, terá os mesmos efeitos nocivos como é retratado neste filme). O que é isto da Fragmentação do Eu? É o que já foi falado no post relativo à personagem Dorian Gray – é ver o Mundo Externo ora como Bom ora como Mau (comportamento predominante nos psicóticos), não havendo integração desta informação. Simplificando, o individuo não consegue reconhecer que uma pessoa pode ser boa e má ao mesmo tempo, as duas facetas fazem parte do ser humano. Não compreendendo isto, quando o Outro é frustrante é categorizado como Mau, Cruel, Vil, contudo, quando é gratificado é categorizado como Bom, Prazeroso, Magnífico (pensem nos sentimentos presentes nos inícios do namoro e nos finais de namoro).


Esta dualidade Cisne Branco-Cisne Negro pode ser vista, igualmente, através da Segunda Tópica de Freud – Id, Ego, Superego. Sendo muito simplista para não complicar, o Id representa os nossos desejos, as nossas necessidades (quando nascemos somos apenas Id), o Superego representa a nossa consciência moral (o que nos faz sentir culpado numa determinada situação) e o Ego é o nosso Eu, a nossa consciência. O que se verifica neste filme é que para a protagonista existe um Id (Cisne Negro, que representa os desejos mais profundos, o nosso lado mais obscuro) e um Superego (o Cisne Branco que representa o controlo castrador da mãe para que Nina seja uma bailarina perfeita)… contudo, devido a esse Superego punitivo, não se verifica a existência de um Ego organizado, onde entramos, assim, no mundo da psicose.

Toda essa clivagem entre Bom / Mau, Id/Superego, Preto/Branco é observável em todo o filme, nas personagens (Nina de Branco, Mãe de Preto) e nos cenários. Verifica-se, igualmente, a presença de um símbolo rico em psicanálise e que já foi abordado neste espaço… o Espelho, como símbolo unificador do Eu (teoria de Lacan sobre o Estágio do Espelho), mas que para Nina espelha os seus fantasmas, o seu Id.

A entrada da personagem Lilly também é fulcral neste enredo pois serve de objecto onde Nina irá projectar o seu ódio pela mãe, sendo agora Lily a figura vestida de preto, o Cisne Negro perfeito, atraente, sem culpas. Contudo toda esta pressão do Superego (mãe) para que Nina mantenha-se na pele do Cisne Branco e não liberte o Cisne Negro (o seu Id) começa enfraquecer e numa altura do filme vemos Nina com feridas nas costas onde as penas pretas começam a surgir (rompimento na simbiose mãe-filha).

A partir daí, delírios e paranóias são experienciadas por Nina para marcarar a inveja do Outro, Outro este que tem o que ela deseja, que conseguem controlar o seu Id, e mantém uma estrutura do Ego estabilizada. Para além disso, verificamos que a sexualidade de Nina mantém um papel de destaque no enredo… Primariamente, o conceito de masturbação onde a sexualidade ainda é muito infantil, não sendo capaz ainda de direccioná-la para o outro, ficando muito ainda no plano auto-erótico. Secundáriamente, temos a cena de amor entre Nina e Lily onde esta última tem tatuada nas costas as asas negras do Cisne, colocando-se a hipótese de uma entrega total de Nina para com o seu Id...

Um filme surpreendente e que valeu a Natalie Portman um Óscar para melhor Actriz. 
Recomendo vivamente a quem ainda não viu.


"Eu sabia que o Cisne Branco não seria um problema. O verdadeiro trabalho seria a sua metamorfose na sua irmã gémea do Mal"

7 comentários:

  1. Muito bom Claudio. Parabéns pela grande análise deste grande filme***** Cármen

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  2. Ainda não tive hipótese de ver o filme, mas adorei a tua análise do mesmo..

    Bisous

    http://ospensamentosdaju.blogspot.com/

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  3. Obrigado pelas vossas opiniões :)

    "Pensamentos da Ju" lamento ter estragado o efeito-surpresa. Quando vires o filme se calhar já não irá ter o impacto desejado. Mas vale sempre a pena (re)ver.

    Cumprimentos às duas
    ***

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  4. Olá Cláudio!

    Esse foi mesmo o ano da psicanálise no cinema. Além de "Cisne Negro" tivemos ainda o grande vencedor do Oscar "O discurso do Rei" (que ainda não vi, mas espero fazê-lo em breve).
    Achei bastante pertinente a sua análise. Desconfio que o diretor do filme seja versado na teoria psicanalítica, pois o drama de Nina pois além de tudo o que você já disse, noto uma grande semelhança entre o drama de Nina e o de Dora: lá está o sr. K na figura de Thomas a beijar-lhe à força, incitando o desenvolvimento de uma sexualidade reprimida e a bailarina aposentada Beth ocupando para Nina a mesma função que a sra. K teve para Dora.
    Outro aspecto interessante do filme é que ele mostra que nossa sombra abriga traços extremamente importantes como a criatividade, a leveza, a plasticidade e que é preciso, portanto, conhecê-la - tarefa que os analistas se encarregam de ajudar seus analisandos a concretizarem.
    Continue com sua perspicácia ao analisar livros e filmes a partir da psicanálise!

    Um grande abraço!

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  5. Ola Lucas!

    Também ainda não tive oportunidade de ver o Discurso do Rei, mas já o tenho disponível aqui no computador (sim, sou adepto da pirataria :)). A ver se este fim-de-semana tiro um tempo para o ver.

    Também já tinha desconfiado desse conhecimento prévio psicanalitico por parte do director pois o Requiem for a Dream (realizado pelo mesmo) também faz alusão a conceitos interessantes da psicanálise. Talvez um dia o analise com detalhe.

    Quanto ao Cisne Negro, interessante esse seu paralelismo entre Nina e Dora, confesso que não tinha pensado nisso. Mas o funcionamento é realmente o mesmo. Thomas acaba por quebrar a tal relação simbiótica mãe-filha que impossibilita uma autonomia sexual por parte de Nina.

    É engraçado ver como determinados filmes aparentemente "alucinados" e "estranhos" com enredos completamente fantasmáticos conseguem transmitir relações que se verificam ainda com bastante frequência actualmente, principalmente estas simbioses aflitivas entre mãe-filho onde o último não tem espaço para se demarcar como ser unificado e completo.

    Obrigado pelo contributo,

    Um grande abraço!

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  6. Análise pertinente e muito bem escrita!

    Também pensei na paixão de Dora por Sr K, assim como a paixão de Nina pela bailarina aposentada. Tamanho era o encantamento de Nina por Beth, que ela rouba alguns pertences da colega. Pertences este, que são coisas do mundo feminino, como o baton, por exemplo. O filme é um prato cheio pra psis. Cada cena dá um livro.

    Parabéns pelo escrito, e obrigada por me ler!

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  7. É verdade Ana, este filme é mesmo uma refeição intelectual para os amantes da psicologia e psicanálise. :)

    Obrigado pelo seu comentário,
    Cumprimentos

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